Raimundo Nonato*
A informação é um dos bens mais valiosos da era da transformação digital. Um dos temas mais debatidos em torno da informação é o direito à privacidade e o uso dos dados pessoais dos cidadãos, que devem ser balizados nos princípios da ética e do Direito. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), com entrada em vigor adiada para janeiro de 2021, prevê normas de uso dos dados. A discussão, agora, está em como controlar o uso abusivo das informações pessoais, como evitar que sejam arquivadas para fins comerciais ou para violar a privacidade das pessoas.
Questões como essas dependem de um código de ética a ser respeitado, como acontece no setor da saúde, em que os profissionais são regidos por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM). Uma delas diz claramente que “as informações sobre o paciente identificado só podem ser transmitidas a outro profissional com prévia permissão do paciente, mediante seu consentimento livre e esclarecido e com protocolos de segurança capazes de garantir a confidencialidade e integridade das informações”.1
Vamos considerar, agora, o momento pelo qual a humanidade está passando ao enfrentar a pandemia do novo coronavírus. O direito individual deve se sobrepor ao direito coletivo no caso de um paciente portador da Covid-19 adotar comportamento que ameace outros cidadãos? Se um portador recusa-se a assumir o isolamento, é potencial transmissor da doença a um número ilimitado de pessoas. Neste caso, o profissional de saúde ou a instituição que detém as informações confidenciais daquele paciente tem a obrigação de proteger a sociedade e revelar a identidade do transmissor às autoridades?
Temos a disputa em torno do direito à privacidade individual ou da preservação da saúde pública, que pode expor muitas opiniões diferentes. Há a opinião de que um profissional ou uma instituição de saúde quebra o direito à privacidade se denunciar o paciente de Covid-19 não engajado no tratamento. Mas há, também, a convicção de que estão protegendo a sociedade contra a epidemia. Para muitos, uma ou outra opinião pode parecer bastante óbvia. Entretanto, quando entramos no campo do Direito, não é tão simples assim.
O art. 11 do Código de Ética Médica, porém, determina que “O médico deve manter sigilo quanto às informações confidenciais de que tiver conhecimento no desempenho de suas funções. O mesmo se aplica ao trabalho em empresas, exceto nos casos em que seu silêncio prejudique ou ponha em risco a saúde do trabalhador ou da comunidade”.2 O sacrifício da privacidade em favor de um bem coletivo parece-nos mais sensato diante da realidade que a humanidade está vivendo.
Quando se trata de prontuário médico, é necessário que a revelação da identidade do paciente seja feita com responsabilidade às autoridades competentes. Vamos imaginar uma situação em que o transmissor da Covid-19 entre em um supermercado ou shopping center e tem seu nome e sua localização anunciados no sistema de alto-falantes. Não parece ser um comportamento que podemos considerar natural. Além disso, coloca o cidadão em condição de vítima de constrangimento público. A informação, portanto, deve trafegar entre autoridades competentes, e não ser aberta ao público em geral. Há de se buscar o equilíbrio de direitos, considerando que a integridade da maioria da população é protegida por políticas públicas com base em comportamento definido por organizações internacionais, entre elas a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para a aplicação eficiente do comportamento ético em relação às informações de terceiros, as instituições e os profissionais da saúde têm à frente alguns desafios que podem ser bem equacionados com o uso de tecnologia mais adequada. Há iniciativas que privilegiam a escolha por plataformas de dados interoperáveis, capazes de permitir o desenvolvimento de aplicações para a transmissão de informações em tempo real em nível nacional, o que auxilia a tomada de decisões. A flexibilização do uso da telemedicina é outro recurso que vai admitir que os pacientes interajam com os diferentes atores da saúde. Tudo isso faz parte da transformação digital que vivemos e que não depende somente da tecnologia, mas também da disposição das pessoas em mudar – sejam profissionais, sejam cidadãos.
A inovação dá suporte a novas formas de agir e de decidir. O Brasil é muito promissor para o mercado de tecnologia, principalmente agora que temos a expectativa da evolução provocada pela transformação digital e a inteligência artificial. Decisões éticas como essa que descrevemos acima podem ser suportadas a partir da adoção da saúde conectada. Um dos princípios para isso é o prontuário eletrônico do paciente, que serve como base de informações de cada pessoa para todo o ecossistema de saúde. E esse caminho começa pelo gerenciamento correto dos dados e pela interoperabilidade entre sistemas e plataformas.
O avanço de paradigmas e a atualização dos aspectos éticos da assistência à saúde no Brasil levam-nos a crer que a sustentabilidade para a saúde começa pela implantação da tecnologia – não apenas ligada à medicina diagnóstica, mas como apoio à tomada de decisão.
Referências
- CFM – CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n° 2.227, de 13 de dezembro de 2018. Define e disciplina a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias. Diário Oficial da União, Brasília, 2019.
- CFM – CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n° 1.246, de 8 de janeiro de 1988. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União, Brasília, 1988. Revogada pela Resolução CFM n° 1.931, de 17 de setembro de 2009.
* Raimundo Nonato é diretor da área de Saúde da InterSystems no Brasil.