Por Mauro Cardoso*
A epidemia de Covid-19 escancara um aspecto importante nas questões de saúde e doença: os níveis de atenção. Os cuidados para controlar doenças e promover a saúde podem ser feitos em níveis individuais como, por exemplo, escovar os dentes para prevenir a cárie dentária ou tomar um medicamento à base de iodo para tratar o bócio. Indo além, a nível comunitário – também chamado ecológico – podemos usar como exemplo as políticas públicas de suplementar flúor na água tratada e iodo no sal de cozinha. Da mesma maneira, existem riscos à saúde que são individuais, como o tabagismo, ou ecológicos, como a poluição atmosférica, mas ambos oferecem riscos para o desenvolvimento de problemas respiratórios.
No nosso dia a dia os aspectos individuais são mais percebidos, ou enfatizados, por serem mais próximos, mas existem situações em que o aspecto ecológico fica bem mais evidente: as epidemias são um exemplo. Lembremos da ideia da hipótese de Gaia, que diz que o ecossistema do planeta Terra inteiro pode ser considerado um complexo sistema interagente, que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas preferivelmente estáveis. Uma epidemia pode ser representada como um adoecimento agudo de uma comunidade, enquanto uma pandemia é considerada uma doença aguda de toda uma sociedade.
Para exemplificar melhor o conceito, me permito fazer uma analogia ao futebol: Um bom jogador é capaz de tomar a bola do adversário fazendo com que ele chute menos ao gol. Mas quando bons zagueiros tomam cada vez mais bolas, o tempo de posse de bola do time inteiro é aumentado e o do adversário é diminuído. O número final de chutes a gol do adversário começa a cair bem mais do que aquele que seria devido apenas ao número de jogadas bem marcadas. A vacina é como um bom jogador. Ele tem um efeito a nível individual e outro a nível do time inteiro (nível ecológico).

Gráfico comparativo entre Austrália (A) e Brasil (B)
Outra analogia explicativa: o risco de se molhar está muito mais relacionado à força da tempestade do que à eficácia do seu guarda-chuva. Um sujeito pode ter o guarda-chuva com a maior eficácia do mundo, mas em uma tempestade com ventos fortes a chance dele se encharcar ainda é maior do que a de um sujeito sem proteção em um dia ensolarado. É até meio óbvio isso. Então, o risco de se infectar com uma doença transmissível está muito mais associado à situação epidêmica externa do que ao nível de proteção individual.
O seu risco individual (absoluto) é proporcional à incidência da doença na comunidade e as máscaras e as vacinas diminuem relativamente esse risco quando comparado a quem não se protegeu (benefícios individuais), além de diminuir a transmissão da doença (benefícios coletivos). O controle final da epidemia está mais ligado a essas medidas coletivas do que às proteções individuais. Em epidemiologia, temos a situação onde máscaras e vacinas conseguem diminuir a transmissão. Isso significa que os nossos “guarda-chuvas” individuais, se usados por todos, têm o bendito e mágico poder de fazer “parar de chover”.
É por isso que a discussão de dispensar o uso de máscara em quem já foi vacinado só ocorre em países onde já se discute se há ou não a ocorrência de transmissão comunitária, ou seja, onde parece que “já parou de chover”, como é o caso da Austrália (parte A do gráfico). No Brasil (parte B), como se pode ver no gráfico, cuja escala é 150 vezes maior, essa discussão ainda estaria bem fora de questão.
*Mauro Cardoso é médico epidemiologista e cientista de dados do Grupo 3778 , uma das principais healthtechs do país, formado pela 3778, Imtep, TEG Saúde e Implus Care.