Por Lívia Vieira dos Santos (*)

O Abril Azul é uma ação da ONU (Organização das Nações Unidas) como uma forma de conscientizar e dar visibilidade sobre a questão atual do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Segundo a entidade, uma em cada 160 crianças no mundo se encaixa no perfil. Nos Estados Unidos, neste mês, o CDC (Center for Disease Control and Prevention) divulgou estatísticas de um autista a cada 36 crianças, e acredita-se que, no Brasil, nossa incidência esteja próxima a este número.

Devido ao aumento significativo na incidência do TEA nos últimos anos, o assunto entrou em evidência, tornando-se um novo ponto de discussão nos meios escolares e na área de politicas públicas de saúde. Nesse sentido, a conscientização auxilia muito na quebra de tabus, preconceitos e na tomada de decisões.

Mas, então, o que é o transtorno do espectro do autismo (TEA)?

Trata-se de um transtorno do neurodesenvolvimento com causas multifatoriais, como fatores genéticos, ambientais, entre outros. Para receber o diagnóstico, a pessoa deve apresentar alterações desde a primeira infância. Fala-se em espectro, pois cada indivíduo acometido tem uma apresentação clínica diferente, com necessidade de tratamento individualizado.

Fisiologicamente, o cérebro do indivíduo com TEA apresenta alterações neuronais que fazem com que os estímulos ambientais sejam recebidos de forma diferenciada, o que leva a uma hipersensibilidade a muitos dos estímulos. Esse excesso de informação entrando no cérebro acaba dificultando a concentração e a interpretação do ambiente e das microfeições faciais. Dessa forma, esse indivíduo tem dificuldade de comunicação interpessoal (já que mais da metade da comunicação humana é não verbal, por expressões faciais), além de levar a um estresse constante devido à hiperestimulação cerebral, o que o torna agitado e com dificuldade em interagir com outras pessoas. Na tentativa de organizar esse excesso de informação recebido pelo cérebro, o indivíduo seleciona um sentido para manter o foco e, assim, conseguir se concentrar e regular seu cérebro (normalmente, é utilizado o sistema vestibular, com movimentos, ou a audição com a ecolalia, que é a repetição de falas e palavras). Além disso, a rotina é algo muito importante para manter essa organização cerebral, o que faz com que esses indivíduos tenham dificuldades em lidar com frustrações.

Como é realizado o diagnóstico?

Deve ser conduzido por um médico psiquiatra especializado ou neurologista infantil, porém a triagem é feita pelo pediatra nas consultas de rotina e avaliação do neurodesenvolvimento. Alguns instrumentos, como a escala M-CHAT, por exemplo, são utilizados na consulta de 18 meses pelos pediatras. Normalmente, para tal diagnóstico, a equipe multiprofissional (fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicólogos) e a escola auxiliam muito, pois, por ser uma condição complexa, existe a necessidade de uma retirada de história completa com paciente, família, escola e profissionais envolvidos com a criança. Infelizmente, muitas vezes, o diagnóstico é demorado, pois é necessário mais de um momento de avaliação, além de aguardar que a criança alcance alguns pontos do neurodesenvolvimento para obter uma melhor definição das suas alterações.

Por que houve esse aumento da incidência?

Ainda não temos a resposta para isso, mas o aumento de alguns fatores de risco, como estresse, poluição e nascimentos prematuros, pode, junto à questão genética, estar associado. Além disso, médicos, professores e profissionais da área da saúde estão cada vez mais treinados para reconhecer alterações e sinais de alerta. Com os diagnósticos mais precisos e alcançando populações com menores déficits, não somente os casos mais acometidos, tem-se feito uma busca reversa, e muitos adultos passaram a ser tardiamente diagnosticados com TEA, o que aumenta a incidência.

E no adulto, como se chega ao diagnóstico?

Os critérios continuam sendo os mesmos, segundo o DSM–V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais): déficits persistentes na comunicação e na interação social, bem como padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (tais sintomas devem ser observados desde a primeira infância); e causar prejuízos significativos no funcionamento social, ocupacional (aprendizagem) ou em outras áreas importantes, como habilidades de autocuidado. A deficiência intelectual e o autismo podem ocorrer juntos, mas nem sempre é o caso.

Então, o TEA é algo para se olhar como ressalva? Ter um filho com TEA é sempre ter dificuldades?

Agora, trazendo um pouco da minha experiência profissional e pessoal como mãe de crianças com transtorno no neurodesenvolvimento (tenho um filho no espectro do autismo e outro com TDAH — Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade): sim, é dificil! A diferença ainda é algo que assusta a familia, os amigos e a escola no momento do diagnóstico. No entanto, conhecer esse mundo me trouxe uma oportunidade de conhecer melhor meus filhos, reconhecer suas dificuldades para superá-las e, quando superamos, é muito gratificante! Além disso, quanto mais me aprofundei, mais o medo do diferente sumiu e o olhar sobre o extraordinário surgiu em mim. Hoje, vejo quão extraordinário é uma criança conversar, organizar seus pensamentos e se comunicar. E o mais extraordinário ainda é quando uma criança dessas é um dos meus filhos, pois sei quantas barreiras internas eles vencem para se adequar. Por isso, vejo que devemos sempre valorizar seus esforços em se comunicar e, quando possível, mostrar a eles quão gostosa a vida pode ser, mesmo com todas as dificuldades. Meus filhos vieram para fazer crescer a família, a escola e os amigos.

E a vida de adulto, como será?

Bem, o futuro a Deus pertence, e quem tem essa resposta na vida? Ter filhos, sejam eles neurotípicos ou atípicos (outro termo utilizado para TEA), sempre é um desafio, interações sociais na adolescência sempre são desafiadoras e qualificar-se na vida adulta para empregos sempre é desafiador. Assim, vejo o futuro como algo incerto tanto para mim quanto para meus filhos e todos os filhos do mundo. Hoje, já vejo empresas buscando as pessoas neurodiversas para participar de sua equipe exatamente por serem diferentes. O que é uma dificuldade para alguns, pode se tornar uma característica desejada. A necessidade de rotinas rígidas e restritas faz com que essas pessoas não se atrasem em compromissos e se realizem por completo sempre que se propõem a fazer uma tarefa. O hiperfoco faz com que desenvolvam outras abordagens em alguns assuntos. O neurodiverso traz ao mundo visões diferentes, e isso faz com que se desenvolva a criatividade. Tabelas, rotinas, fluxos, gráficos, formulações exatas e temas correlacionados são sempre bem desenvolvidos por essas pessoas quando estimuladas e treinadas para a função. Alguns vão precisar de auxílio e supervisão, mas, hoje, as empresas já não trabalham com supervisores e gestores que auxiliam os funcionários ditos “normais”? Por que não criar um fluxo que auxilia a inserção desses novos profissionais que estão surgindo no mercado com esse diagnóstico, seja na infância ou mais tardio? Será fácil inserir todos no mercado de trabalho? Certamente não, mas com informação e quebra de tabus, chegamos mais perto.

* Lívia Vieira dos Santos (CRM-SP 140015) é pediatra e cardiologista infantil do Vera Cruz Hospital – Responsável técnica e cofundadora do Espaço Multiprofissional Vitaví para tratamento do Transtorno do Espectro do Autismo.