Como o coronavírus está tirando dos familiares a oportunidade da despedida e influenciando a vida de quem lida diretamente com as mortes

Um dos aspectos mais difíceis da pandemia da Covid-19 em todo o mundo tem sido o enfrentamento do luto em circunstâncias incomuns, provocadas pela necessidade de afastamento dos doentes. Familiares são impedidos de sepultarem seus mortos, profissionais de saúde lidam com inúmeros casos diariamente, e agentes funerários que adaptam procedimentos são questões que passaram a fazer parte da realidade recente. Com isso, a demanda por atendimentos em saúde mental também cresce a cada dia e é momento de contar com especialistas.

Se na rotina normal o luto é um desafio para todos os envolvidos, em situação de pandemia a orientação de psicólogos e psicoterapeutas se torna um diferencial importante no apoio emocional, para avaliar comportamentos, indicar posturas para amenizar os impactos e prevenir traumas.

O catálogo do Grupo Editorial Summus conta com importantes especialistas autores de livros essenciais sobre o tema do luto e da tanatologia. Em tempos em que se faz necessário tratar do assunto com propriedade, seguem depoimentos e trechos de obras cujos autores têm conhecimento técnico e que oferecem subsídios para o enfrentamento:

Experiências contemporâneas sobre a morte e o morrer, de Rodrigo Luz – Psicólogo

“É um tempo em que a gente vai precisar amar com os olhos e dar segurança aos profissionais de saúde com respeito às normas será um desafio adicional para nós que amamos com o toque. De uma certa maneira, cuidar dos pacientes nessa estrutura implica em lidar com o nosso próprio medo e com a nossa vulnerabilidade, enquanto lidamos com a morte tendo o distanciamento crítico. Eu tenderia a dizer que não são só paciente e família que são afetados por essa experiência, mas os profissionais de saúde que vivem o luto não reconhecido.

Para a família, certamente é um desafio adicional à saúde mental por não poderem participar de rituais próprios do processo de enlutamento e que facilitam a progressiva lida com a realidade. Esses rituais de velório, participação e validação e apoio social ficam comprometidos. Daí a importância de iniciativas que possam protegem essas pessoas e que possam ajudá-las a dar conta do processo de ritual sem a presença física. Por isso, é preciso investir em estratégicas que possam ajudar às pessoas à distância, pois a situação pode levar a desfechos muito complicados no processo de luto.

O nosso trabalho é ajudar às famílias a perceberem que mesmo que elas não possam estar lá, ou que não possam participar diretamente com o corpo, que possam se dar conta de tudo o que estão fazendo para o ente querido. A criar um espaço para continuar construindo essa história, porque se aquela pessoa não pode mais falar de si mesma, nós podemos continuar o diálogo com ela. A continuidade desse diálogo marca a experiência de que, apesar de não estar mais neste mundo, continuará sendo lembrada e amada. Por isso é importante que se tenha rituais sociais, de validação da experiência de sofrimento. O ideal é contar com apoio psicológico no sentido em que as equipes de saúde possam oferecer acolhimento adequado a essas famílias, com dispositivos virtuais que permitam aos pacientes conversar com seus parentes, ou mesmo espaços de velório na comunidade nesse processo. As redes sociais têm papel importante nas estratégias de proteção que levem a melhores desfechos na validação social da perda e na importância do ritual.”

Descansem em paz os nossos mortos dentro de mim, de Sergio Perazzo – Psiquiatra e psicodramatista.

“Uma das repercussões desse modo de tratar a morte se reflete no panorama divisado nas salas de psicoterapia. É cada vez mais frequente a necessidade que as pessoas têm de enterrar seus mortos com o auxílio do psicoterapeuta. A esse caminho muitas e muitas vezes se chega através das mais diversas dificuldades, que à primeira vista não parecem se correlacionar com a morte ou com alguma morte. Um bloqueio da expressão de afeto no presente, por exemplo, pode surgir relacionado com um impedimento passado de despedir-se de um ente querido que morreu. Ou uma frigidez conectar-se com um abortamento provocado ou com a morte de um filho. São incontáveis os nexos possíveis que acabam por pontilhar, por meio de diversos papeis, inúmeras dificuldades que intercruzam sexualidade, separações e paixões com morte.” […]

“Outra consequência lógica dessas reflexões, no que diz respeito ao papel do profissional de saúde diante da morte, e que, sendo ele parte desse social submetido a esse mesmo desenrolar histórico, e tendo ele seus temores e vivências no experienciar a morte de outrem e de pessoas próximas, imersas em seu pequeno mundo, estar diante de um paciente que morre ou que vai morrer e estar diante da reedição da história de suas emoções quanto a morte em sua vida. É o passado que volta, e com ele sua dor e seu sofrimento. Não é à toa que muitas vezes ele se sente paralisado e impotente em tais situações e se vê compelido a utilizar os mecanismos de defesa de negação, de evasão, de racionalização – ou qualquer outro que o leve para longe do contato consigo mesmo.”

Sobreviventes enlutados por suicídio – Karina Okajima Fukumitsu – Psicóloga e psicopedagoga.

Reunindo anos de pesquisa e de trabalho de campo com mães, pais, irmãos e amigos de pessoas que se suicidaram, Karina Okajima Fukumitsu, psicóloga, educadora e maior especialista brasileira no tema, dedicou-se a relatar o processo de choque, dor, agonia e tristeza pelo qual passam essas pessoas.

Ao longo de seus estudos, cunhou a expressão “extrair flor de pedra”: “Apesar de constatarmos que nosso solo existencial está árido e aparentemente inerte, devemos preservá-lo para que um dia a vida possa nos surpreender com a beleza de uma flor que nascerá”. Fukumitsu usa o termo para ilustrar a habilidade humana de ressignificar tudo que acontece, mesmo após se sentirem demolidos e fragmentados existencialmente.

Em seu livro, Karina traz as formas de definições de “cuidado” e de “intervenção”, bem como levanta as principais dificuldades e necessidades apresentadas pelos enlutados por suicídio.

Apesar de a Karina ser especialista em suicídio, está apta a falar sobre perdas bruscas, o que a gabarita como fonte nessa sugestão.

Ao aprofundar a questão do impedimento do luto, a pauta permite orientar sob novas formas de vivenciar a experiência, incluindo de relatos de personagens que estão longe de seus parentes vitimados e até mesmo de quem acompanhou tudo de perto e, ainda assim, não pode acompanhar o sepultamento por também estar confinado.

Outro ponto relevante é o da rotina extrema dos profissionais de saúde que, apesar da formação e de todo treinamento, estão esgotados física e psicologicamente com a situação.