“O nosso maior desafio é fazer com que a saúde seja levada a sério neste país”
O médico Yussif Ali Mere Jr. foi eleito para conduzir, pelos próximos três anos (2020-2023), a presidência da Associação dos Hospitais do Estado de São Paulo (AHESP), entidade que representa mais de 850 estabelecimentos de saúde da rede privada.
Com um longo histórico de atuação em defesa do setor e uma experiência que o levou a dirigir instituições como a Federação dos Hospitais do Estado de São Paulo (FEHOESP), o Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (SINDHOSP), o Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios de Ribeirão Preto (SindRibeirão) e a Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT), Yussif Ali Mere Jr. conversou com a Visão Hospitalar sobre as suas prioridades à frente da AHESP.
Ele avaliou os impactos da epidemia de Covid-19 no funcionamento da rede hospitalar brasileira, criticou a construção de hospitais de campanha pelo país, à qual se referiu como “um grande erro”, e reforçou a necessidade de conscientizar a população para o retorno imediato dos tratamentos eletivos que acabaram suspensos. “Já há dados específicos que atestam existir aumento de óbitos domiciliares. Isso significa que as pessoas que precisam continuar o tratamento por uma cardiopatia, por um problema crônico degenerativo, não estão fazendo. Isso é um absurdo!”. Confira a entrevista completa:
VISÃO HOSPITALAR – O senhor foi eleito, há pouco mais de três meses, para presidir a AHESP, com o maior número de estabelecimentos representados no país (mais de 800 hospitais da rede privada). Como avalia o desafio e quais serão as suas prioridades?
Yussif Ali Mere Jr. – Os desafios do Setor Saúde são muito grandes, principalmente num país em que não temos a saúde como prioridade governamental, em nenhum dos níveis, nem no governo federal, nem nos governos estaduais, nem nos municipais. Então, o nosso maior desafio é fazer com que a saúde seja levada a sério neste país. É claro que, durante a pandemia, essa situação se torna evidente; todo mundo discute saúde, se tem leito, se não tem. Mas essa é uma discussão momentânea. Passou a pandemia, ninguém mais vai discutir, mas nós teremos o desafio de fazer com que a sociedade discuta cada vez mais sobre a saúde. Afinal de contas, nós temos um subfinanciamento crônico na saúde que vem destruindo o setor, principalmente o setor privado. O público já é um setor atualmente sucateado e que precisa ser revitalizado. Mas, quando eu falo em revitalizar, não quer dizer que o governo precisa investir em construção de hospitais; ele precisa investir no Setor Saúde, precisa investir no financiamento da saúde. A iniciativa privada está mais do que preparada para responder a esse desafio. Nós temos um setor privado na área da saúde no país que é importante, isso está evidenciado nesta pandemia. Nós temos capacidade, dinheiro para investir, temos conhecimento e temos profissionais. Só precisamos que os entes governamentais entendam que a saúde não é um gasto, é um investimento que vai trazer muito desenvolvimento pessoal para cada brasileiro.
VISÃO HOSPITALAR – Em sua posse, o senhor falou do desafio de integrar o associativismo ao sindicalismo. Qual é a importância desta integração? De que forma ela pode fortalecer a luta por melhorias no setor?
Yussif Ali Mere Jr. – É muito importante focarmos nessa integração, porque o sindicalismo, a partir de 2017, com a reforma trabalhista do governo Temer, trouxe a não obrigatoriedade do imposto sindical. Isso faz com que os contribuintes do sindicato sejam voluntários. Ou seja, basicamente, nós vamos ter a mesma condição de cobrar uma contribuição sindical, uma contribuição confederativa, de cobrar uma contribuição associativa. Então, o grande desafio de integrar essas duas áreas é justamente tornar mais fortes as entidades que representam as empresas do Setor Saúde. Nós não vamos nunca ser fortes se as empresas não forem fortes, se não tivermos representatividade junto à sociedade civil. Então, todos do Setor Saúde precisam conhecer isso e se integrar a essa situação, porque todos vão ganhar. Então, o nosso grande desafio é fazer com que revitalize a associação, revitalize o sindicato, para tudo isso culminar no fortalecimento da Federação Brasileira de Hospitais (FBH), que é a Federação nacional mais antiga e que representa todos os serviços de saúde do país.
VISÃO HOSPITALAR – Qual tem sido o maior impacto da pandemia de Covid-19 no setor hospitalar brasileiro? Em São Paulo, quais foram as consequências para estabelecimentos que não estavam na linha de frente do atendimento à Covid-19?
Yussif Ali Mere Jr. – Esse é um grande problema. É o maior problema que estamos vivendo hoje, principalmente os hospitais do interior do estado, mesmo na região metropolitana de São Paulo, mesmo na capital, nos hospitais menos atingidos pela Covid. Todo mundo fugiu dos hospitais, o movimento desses estabelecimentos caiu, inclusive nos hospitais que atendem o Sistema Único de Saúde (SUS). O que aconteceu foi uma total incapacidade de comunicação; as pessoas fugiram dos prontos-socorros e os hospitais ficaram completamente vazios. Isso vai significar, nos próximos meses, uma dificuldade financeira muito grande para os hospitais conseguirem manter as suas operações. O governo federal, mais especificamente o Ministério da Saúde, tem que ver com muito carinho essa situação de linhas de créditos, principalmente para os hospitais privados, que não são aqueles hospitais que estiveram na linha de frente da Covid-19, porque tais hospitais, hoje, até estão recebendo alguns pacientes, mas está longe de ser aquele movimento de que necessitam e tinham antes da pandemia. Então, nós vamos precisar cuidar muito disso, senão vamos ter, a exemplo de outros setores da economia, muitos hospitais fechando as portas a partir da volta ao trabalho, do fim da quarentena no nosso país.
VISÃO HOSPITALAR – De que forma os hospitais privados deverão atuar para conscientizar a população sobre o retorno aos atendimentos médicos nesses estabelecimentos? O senhor acredita que esse “pavor” de contrair a doença deve permanecer por muito tempo?
Yussif Mere Ali Jr. – Esse é um problema até maior do que o dos hospitais, porque o que estamos vendo é que as pessoas estão descontinuando tratamentos que não podiam ser descontinuados, a exemplo do tratamento oncológico. A pessoa que está se tratando de um câncer não pode parar. O que vemos hoje é que elas estão descontinuando um tratamento de que precisam. Igual a esse tratamento, estão também as doenças crônicas degenerativas, principalmente hipertensão e diabetes. Se a pessoa não faz o controle, ela vai retomar à normalidade numa situação clínica muito pior. Nós temos ainda agravada a situação de cardiovasculares. Já há dados específicos que atestam existir aumento de óbitos domiciliares. Isso significa que as pessoas que precisam continuar o tratamento por uma cardiopatia, por um problema crônico degenerativo, não estão fazendo. Isso é um absurdo! Precisamos conscientizar. O que estamos fazendo é distribuindo comunicados, falando com todas as entidades e provocando a própria FBH, que deve encabeçar uma campanha para que as pessoas não descontinuem os seus tratamentos, porque realmente essa retomada pode ser uma situação muito pior do que estava na pré-pandemia. É uma questão muito importante e que vamos nos dedicar muito, a partir do momento que a gente puder conscientizar toda a população diante dessa situação tão grave.
VISÃO HOSPITALAR – O senhor falou do preparo da rede hospitalar privada para atender pacientes do SUS, mas, neste período de pandemia, nós vimos muito pouca ação por parte dos entes federados para buscar essas parcerias com a rede privada. Na sua opinião, o que está faltando?
Yussif Mere Ali Jr. – No início, o governo de São Paulo nos procurou e começamos a tratar de uma parceria muito interessante para o estado todo, que era uma compra de leitos privados. O que ocorre é que, de repente, essa negociação parou e não tivemos nenhuma explicação do porquê isso aconteceu. E, hoje, nós temos por todo o interior muitos locais com falta de leitos, situação que poderia não ocorrer se nós tivéssemos essa parceria. Outro erro muito importante dos governos estaduais e municipais foi a construção dos hospitais de campanha, porque estes hospitais – posso citar como exemplo os de São Paulo, como Anhembi, Pacaembu e Ibirapuera –, têm muitos mais leitos de baixa complexidade do que leitos de UTI, que são muito difíceis de montar. E a Covid precisa muito pouco de leitos de enfermaria; o necessário são leitos de UTI. Esse é um gasto público desnecessário. Um erro brutal. Quando falo em desperdício numa área como a saúde, não pode ser tratado com um desperdício comum. Se os governos tivessem conversado mais conosco, isso não teria acontecido. O que nos leva a indagar se existe interesse por trás da construção desses hospitais. O Setor Saúde está mais que preparado e disposto a dialogar, seja com o governo federal, seja com os governos estaduais e municipais. O que nós queremos é servir à população de um serviço médico hospitalar adequado. Nós entendemos que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tão propagado pela Organização das Nações Unidas (ONU) – sendo que o do Brasil é aquém da nossa economia – precisa subir, e, pra isso, é preciso investir em saúde. É fundamental, para aumentar o nosso IDH, aumentar a nossa qualidade de vida. Os nossos governantes, principalmente, precisam entender isso e procurar na iniciativa privada a sua saída. A saída é muito mais barata, muito mais eficiente, e a resposta vai ser muito rápida no dia que isso acontecer.
VISÃO HOSPITALAR – Muito tem se falado sobre as heranças que a Covid vai deixar no Setor Saúde do Brasil. Quais são os principais ensinamentos que esta epidemia traz para a rede hospitalar brasileira?
Yussif Mere Ali Jr. – Quando o ministro ainda era o Mandetta – logo nos primeiros pronunciamentos que pude ouvir dele –, ele falou nos distritos sanitários, disse que o Brasil precisaria implantar aproximadamente 400 e pouco distritos, visto que cada um teria 500 mil habitantes, o que perfaz os nossos pouco mais de 200 milhões de habitantes. Isso é muito importante. Nós precisamos retomar essa conversa, porque com essa divisão de aproximadamente 400 distritos sanitários, nós vamos ter o que esta pandemia nos mostrou, que é saber a acuracidade com precisão, a quantidade de leitos de que precisamos. Mas, não precisamos de leitos de qualquer coisa, precisamos de leitos de UTI. Há lugares no país que não têm leitos referenciados de UTI. Não podemos deixar que pessoas morram por falta de leitos de UTI num país que tem a décima economia do mundo. O que se pretende é ter saúde universalizada, que é um grande ganho. O SUS mostrou, nesta pandemia, a que veio, e ele é muito importante no país, só que nós precisamos fazê-lo funcionar, e, para fazê-lo funcionar com custo muito mais baixo e eficiência e eficácia muito maiores, precisamos dessa integração público-privado. Espero que o legado desta pandemia seja que não podemos mais padecer com a falta de leitos de UTI. Evidentemente, não faltam salas de cirurgias pelo Brasil todo. O que precisamos é ter o financiamento para que essas cirurgias sejam realizadas. Então, são necessários financiamento e leitos de UTI. Espero que este seja o legado desta pandemia para todo o setor hospitalar, e mais, para todo o país. O nosso país é muito heterogêneo, mas é homogêneo das necessidade de que temos que olhar a saúde de maneira séria e eficiente.
Por Felipe Nabuco