Entrevista – Wilames Freire Bezerra – presidente do Conasems

Com certeza, teremos uma ‘onda’ de proporções imprevisíveis,
relacionada a tudo que se deixou de fazer em 2020”

Em janeiro de 2021, tem início um novo ciclo de gestões municipais em todo Brasil. Milhares de prefeitos, e, com eles, seus respectivos secretários municipais de Saúde, terão pela frente, já em seu primeiro mês de administração, um cenário complexo de “retorno” da pandemia de Covid-19 pelo país, o que muitos já batizaram de “segunda onda”. Diante de tantas trocas nos Executivos municipais, a descontinuidade dos serviços assistenciais não é o que mais preocupa o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Para Wilames Freire Bezerra, presidente da entidade, o que tem tirado o sono de gestores da saúde por todo país são as previsões, nada animadoras, do financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) para 2021.

O Projeto da Lei Orçamentária, apresentado no Congresso Nacional, concede ao Ministério da Saúde, em 2021, para execução das ações e dos serviços de saúde, cerca de R$ 124 bilhões. Ou seja, 2,4% a mais do que foi destinado em 2020. Porém,  até o momento, não há previsão de recursos a serem reservados ao enfrentamento da pandemia, que, em 2020, ultrapassaram as cifras de R$ 44 bilhões, e, certamente, continuarão sendo necessários em 2021.

Com previsão de poucos recursos em caixa e uma demanda que aumentou exponencialmente no último ano, em decorrência do represamento de atendimentos e do agravamento de casos crônicos, as Secretarias Municipais de Saúde terão pela frente um cenário ainda mais desafiador do que foi o do início da pandemia. “Com certeza, teremos uma ‘onda’ de proporções imprevisíveis, relacionada a tudo que se deixou de fazer em 2020: atendimentos que deixaram de ser realizados, aplicação de vacinas, ações de controle e cuidado de pacientes crônicos, cirurgias e procedimentos eletivos… enfim, todas as situações não Covid que foram adiadas ou canceladas”, comenta Freire.


De acordo com ele, entre os principais desafios está a organização da assistência especializada. “Considerando os dados históricos dos quatro últimos anos, registra-se, até o mês de setembro de 2020, uma defasagem de mais de 770 milhões de procedimentos ambulatoriais e hospitalares, com previsão de que este número ultrapasse 1 bilhão em 2021. Estamos falando de ações de promoção e prevenção em saúde, procedimentos com finalidade diagnóstica, clínicos, cirúrgicos, transplantes, medicamentos, órteses, próteses e ações complementares de atenção à saúde”, explica.

A retração dos recursos federais destinados à Atenção Primária em Saúde (APS) é outra forte preocupação. “Nesta, que é uma das mais importantes áreas de atenção à população, o acréscimo de recursos previstos para 2021 não é suficiente para suportar o aumento, constitucionalmente estabelecido, para os agentes de saúde. O Conasems apresentou ao Congresso Nacional a necessidade de complementação de mais de R$ 1 bilhão para que não ocorra qualquer tipo de perda no atendimento aos cidadãos.” Confira, agora, a entrevista completa com o presidente do Conasems.

VISÃO HOSPITALAR Em 2021, tem início um novo ciclo de gestões municipais em todo Brasil. O cenário da pandemia demonstra que a situação pode se agravar justamente nos próximos meses, com a “segunda onda”. Diante de tantas trocas nos comandos das Secretarias Municipais de Saúde, qual é a principal preocupação neste momento? Como o Conasems tem atuado para contribuir com essas transições?

Wilames Freire Bezerra O panorama da pandemia, no mundo e no Brasil, mostra que iremos conviver com a Covid-19 por um bom tempo. E, com certeza, teremos uma “onda” de proporções imprevisíveis, relacionada a tudo que se deixou de fazer em 2020. Atendimentos que deixaram de ser realizados, aplicação de vacinas, ações de controle e cuidado de pacientes crônicos, cirurgias e procedimentos eletivos… enfim, todas as situações não Covid que foram adiadas ou canceladas. Concluindo, os cenários de imprevisibilidade continuarão em 2021. A nossa principal preocupação é justamente esse quadro que já vivenciamos e que exige a necessidade de se reorganizar a Rede de Atenção à Saúde, para convivência, por longo período de tempo, entre casos Covid e não Covid. Desde agosto de 2020, começamos a preparar um processo de apoio aos novos gestores municipais de Saúde para a gestão municipal que se inicia em janeiro de 2021. 

VISÃO HOSPITALAR Como tem sido essa ajuda?
Wilames Freire Bezerra É importante frisar que, ao mesmo tempo em que as ações iniciadas e em desenvolvimento não podem sofrer descontinuidade, a nova gestão municipal traz novas prioridades, novos olhares sobre os problemas e as soluções, e isso tem sido positivo ao longo do tempo. Dessa forma, estamos desenvolvendo um conjunto de iniciativas, projetos e ações que tem por objetivo fortalecer o que chamamos de “CPF da Gestão”, e desenvolver a Rede de Atenção à Saúde, implementando mecanismos de governança e gestão interfederativa. Isso quer dizer: qualificar o processo de planejamento municipal, organizar a Conferência Municipal de Saúde em 2021, fortalecer o controle social e qualificar a gestão orçamentária, financeira e contábil dos Fundos Municipais de Saúde. Ao mesmo tempo, fortalecer os processos da atenção à saúde, reforçando o papel da APS como coordenadora do cuidado e ordenadora da Rede. Para isso, o Conasems conta com a Rede Conasems, o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems), a rede de apoiadores regionais, os projetos e as iniciativas coordenadas e integradas, além de canais de comunicação com cada gestor municipal no país.

VISÃO HOSPITALAR Especialistas do setor têm apontado o financiamento do SUS como o maior desafio para 2021. Isso se deve, basicamente, aos reflexos da pandemia, que represaram atendimentos, retardaram diagnósticos e agravaram a situação de pacientes que já eram graves. Além do aumento exponencial da demanda, as gestões municipais e estaduais não contarão com o incremento orçamentário que tiveram em 2020 para combater a pandemia. Como o senhor avalia o cenário econômico da saúde para 2021?

Wilames Freire Bezerra No ano de 2020, o orçamento do Ministério da Saúde recebeu um aporte de recursos financeiros que ultrapassa R$ 44 bilhões. Este valor foi destinado ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus. Perto da metade deste valor foi transferido aos municípios; todavia, vale citar que o montante dos créditos extraordinários reservados ao SUS representa apenas 7,3% dos mais de R$ 600 bilhões destinados pela União para enfrentamento à Covid-19. O Projeto da Lei Orçamentária, apresentado no Congresso Nacional, concede ao Ministério da Saúde, em 2021, para execução das ações e dos serviços de saúde, cerca de R$ 124 bilhões, ou 2,4% a mais do que foi destinado em 2020. Assim, para além das preocupações em relação à não previsão de recursos reservados às necessárias ações de saúde de combate à pandemia, que, de fato, não se encerrará em 31 de dezembro de 2020, existem outras preocupações não menos importantes. 

VISÃO HOSPITALAR O senhor poderia elencar essas preocupações?
Wilames Freire Bezerra As ações voltadas para atendimentos ambulatoriais e hospitalares não realizadas em função da pandemia é uma delas. Considerando os dados históricos dos quatro últimos anos, registra-se, até o mês de setembro de 2020, uma defasagem de mais de 770 milhões de procedimentos ambulatoriais e hospitalares, com previsão de que este número ultrapasse 1 bilhão em 2021. Estamos falando de ações de promoção e prevenção em saúde, procedimentos com finalidade diagnóstica, clínicos, cirúrgicos, transplantes, medicamentos, órteses, próteses e ações complementares de atenção à saúde. A retração dos recursos federais destinados à APS é outra forte preocupação. Nesta, que é uma das mais importantes áreas de atenção à população, o acréscimo de recursos previstos para o ano de 2021 não é suficiente para suportar o aumento, constitucionalmente estabelecido, para os agentes de saúde. O Conasems apresentou ao Congresso Nacional a necessidade de complementação de mais de R$ 1 bilhão para que não ocorra qualquer tipo de perda no atendimento aos cidadãos. Outra preocupação diz respeito à diminuição dos recursos federais reservados ao SUS. Nos últimos anos, os municípios têm aportado ao sistema valores muitos superiores ao mínimo constitucional exigido, recursos estes que, em um ano, chegam a representar o total arrecadado em Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Ainda em relação à diminuição dos recursos federais, chama atenção a retração em investimentos no sistema. Ano a ano, os valores reservados à ampliação e ao fortalecimento da capacidade instalada do sistema têm diminuído ou migrado para emendas parlamentares. É importante termos mais recursos direcionados à estruturação das redes de atenção, conformadas nas regiões de saúde, de forma a garantir o atendimento integral e universal do SUS.   

VISÃO HOSPITALAR De uma forma geral, como o senhor avalia o desempenho das Secretarias Municipais no enfrentamento à pandemia de coronavírus? Como o Conasems tem auxiliado os municípios durante toda a pandemia?  
Wilames Freire Bezerra Avaliamos como positivo, diante do cenário de muita incerteza e politização. O Conasems auxiliou como protagonista de inúmeras demandas, como a insistência em aprimorar os critérios de definição de casos, que foi elaborado em julho, em conjunto com o Ministério da Saúde, e resultou no Guia de Vigilância da Covid-19 e suas revisões. Fizemos, também, uma defesa incessante da ampliação de testes RT PCR para atenção básica; realizamos treinamentos virtuais sobre a importância e de como executar o monitoramento e o isolamento de contatos com Covid, visando à interrupção da transmissão; criamos o Grupo Vigilância em Saúde do Conasems, com representação de todos os Cosems e reunião semanal para prover apoio técnico mais efetivo aos municípios em relação ao enfrentamento à pandemia.

VISÃO HOSPITALAR Uma das medidas emergenciais tomadas em 2020, que parece que não vai se repetir em 2021 em muitos locais, diz respeito à estruturação de hospitais de campanha para atender a população. Qual é a avaliação que o Conasems faz dos hospitais improvisados? Foi uma medida assertiva? Deixaram algum legado? 

Wilames Freire Bezerra A modelagem da Rede de Atenção para combate à pandemia foi acontecendo à medida que fomos conhecendo a doença e sua história. Exemplos disso são diversos, e não somente os hospitais de campanha. A decisão de implementação dos hospitais partiu da análise da situação em cada Unidade da Federação, feita por estados e municípios e incluída nos planos de contingência estaduais. E assim deve ser, pois são os municípios e os estados que têm a gestão da Rede de Atenção e sabem de sua capacidade e qualificação para o cuidado em saúde, bem como sua capacidade na gestão da clínica.  Vários hospitais de campanha e demais equipamentos, como os centros de atendimento, tiveram e continuam tendo papel fundamental em compor e ampliar a capacidade de resposta do sistema de saúde às necessidades de saúde da população. Também podemos apontar o grande desenvolvimento das ações de telessaúde ocorrido. Além de ainda se fazerem necessários: a formação de profissionais de saúde; a aquisição de equipamentos; e a estrutura de logística para o cuidado que ocorreu e que se mantém. São ações permanentes para que nosso sistema de saúde seja cada vez melhor.

VISÃO HOSPITALAR Um dos temas que tem ocupado a agenda do setor diz respeito ao debate sobre a vacina e o processo de vacinação da população. Qual é a principal preocupação do Conasems em relação ao tema? Há algum risco de o imunizante não chegar a todos os municípios?

Wilames Freire Bezerra – Nossa principal preocupação é com a operacionalização do plano de vacinação. Sabemos e temos muita competência nesse processo, já que aplicamos, anualmente, cerca de 300 milhões de doses em nossas 48 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS). Em relação à Covid-19, não teremos vacina para todos. Então,  algumas questões nos preocupam: insumos, como seringa e agulha (quem vai prover estes insumos aos municípios?); sistema de informação precário e muito inconsistente; comunicação oportuna (pois teremos que ser precisos em informar as prioridades de grupos para vacinação); segurança em relação ao transporte e durante a vacinação na UBS. Existe, também, uma grande preocupação em relação a algumas vacinas contra o coronavírus, pois a nossa cadeia de frios não comporta temperaturas negativas extremamente baixas. As vacinas chegarão a todos os municípios brasileiros conforme disposto na Constituição e nos princípios basilares do SUS.

Por Felipe Nabuco
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