Legislação brasileira permite que mulheres manifestem o interesse em entregar bebê para adoção logo após o parto e na própria maternidade, sem constrangimentos, garantindo um parto seguro e assistência em saúde para ambos

Ainda com o cordão umbilical e envolto em apenas uma tolha, um recém-nascido do sexo masculino foi levado à maternidade do Hospital São Luiz, em Cáceres, interior do Mato Grosso, após ser deixado em frente à uma residência no bairro Cavalhada. O fato aconteceu nesta quarta-feira (3/2) e se soma a inúmeros relatos de casos semelhantes de abandono ocorridos no Brasil e no mundo.

O bebê está recebendo agora toda a assistência necessária na unidade hospitalar e passa bem. Pesando 3,3 quilos e medindo 49,5 cm, o recém-nascido já enfrentou sua primeira batalha pela vida. Partos sem acompanhamento de profissionais da saúde representam risco tanto para a mãe, quanto para o bebê. “Podem ocorrer, principalmente, hemorragias e infecções. Há ainda a possibilidade de complicações durante o período expulsivo do trabalho de parto, causando o sofrimento fetal e asfixia. São muitos os riscos envolvidos em um parto sem assistência, que podem ocasionar o óbito materno e fetal”, explica Arlete Oliveira, enfermeira obstétrica do Hospital São Luiz, unidade da Pró-Saúde. A maternidade do hospital é referência em atendimentos de alto risco para gestantes de 22 municípios da região Oeste do estado.

Atuando há anos na maternidade do Hospital São Luiz, Arlete confessa que foi a primeira vez que atendeu um caso de recém-nascido deixado na rua. Segundo a legislação brasileira, abandonar uma criança na porta de casa, de uma igreja ou mesmo entregar a desconhecidos é crime e a mãe ou pai respondem na justiça por abandono.

No entanto, o que poucas famílias sabem é que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) oferece uma alternativa segura e legal para mulheres que desejam realizar a entrega espontânea de bebês para adoção. Criado há três décadas, o ECA prevê, em seu artigo 13, que “as gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para a adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude”.

O constrangimento citado ocorre muitas vezes por um julgamento moral da sociedade que ainda acredita que toda mulher tem uma vocação natural à maternidade. Essa hipótese não possui embasamento científico, mas é reforçada pela cultura. Seja por falta de rede de apoio ou de informação, muitas mulheres se deparam com uma gestação não planejada e ainda precisam lidar com a ausência do pai da criança que está sendo gerada.

Difundir informação sobre o assunto é fundamental para evitar casos de abandono. “Atendemos muitas gestantes em situação de vulnerabilidade. Sentimos que há muita vergonha por parte das mulheres em externar sua vontade de deixar o bebê para adoção. Mas, atuamos para que elas saiam daqui devidamente orientadas sobre as possibilidades, para evitar situações trágicas de abandono”, ressalta a enfermeira. “A gestante pode realizar o parto com a segurança assistencial necessária e o hospital, por meio da assistente social, aciona os órgãos responsáveis para dar seguimento no processo de entrega do bebê, como o Conselho Tutelar e a Vara da Infância e Juventude”, complementa.

Abrir mão da criança é um direito e optar pela entrega voluntária seguindo a legislação, além de não ser crime, é a opção mais segura e evita situações de aborto ilegal, abandono de crianças e óbitos maternos e neonatais. “Oferecemos apoio e informação. Não cabe aos profissionais da saúde fazer julgamentos, não sabemos qual é a realidade da pessoa para tomar uma decisão como essa. Cada um tem seu motivo, seja ele financeiro, psicológico ou social”, complementa Arlete.

“Aqui no São Luiz, todos ficaram emocionados com a história deste recém-nascido. Em todos estes anos de profissão eu nunca havia enfrentado com uma situação como essa. É um bebê lindo, está bem de saúde e recebendo todos os cuidados”, conta a profissional.

Mortalidade materna e neonatal

Segundo dados do Ministério da Saúde, “no Brasil, de 1996 a 2018, foram registrados 38.919 óbitos maternos no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), sendo que aproximadamente 67% decorreram de causas obstétricas diretas, ou seja, complicações obstétricas durante a gravidez, parto ou puerpério devido à intervenções, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de qualquer dessas causas”. Outro dado que chama atenção é fato de que 92% dos casos são evitáveis.

Ainda de acordo com o órgão federal, as mulheres que mais falecem por causa materna são as de raça/cor preta e parda (65%), que não vivem em união conjugal (50%) e com baixa escolaridade (33%). As altas taxas de mortalidade materna no Brasil evidenciam o grave problema de saúde pública do país e se configura como um dos principais desafios para nossa sociedade.

Em relação aos óbitos neonatais, o cenário vem evoluindo positivamente no país. De acordo com dados do Relatório 2020 de Mortalidade Infantil do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), nos últimos 19 anos, houve queda de 56,11% nos índices de mortes de recém-nascidos no Brasil. Neste período, a taxa de mortalidade neonatal (mortes a cada 1000 nascimentos, ocorridas entre o parto e o 28º dia de vida), caiu de 25,3 em 1990, para 7,9 em 2019.

Apesar da queda histórica, o Brasil continua na média entre seus vizinhos na América do Sul, e segue abaixo da média se comparado ao resto do mundo. Ainda segundo o UNICEF “nos países em desenvolvimento, a média de mortalidade neonatal é de 27 mortes por cada mil nascimentos. Já nos países desenvolvidos, essa taxa é de apenas três mortes por cada mil”.