Denise Arantes*

A pandemia causada pelo novo coronavírus trouxe mudanças sem precedentes para o mundo do trabalho. Com a adoção de medidas de isolamento e de distanciamento social visando a frear a disseminação do novo agente patogênico, o labor na modalidade teletrabalho aumentou exponencialmente no contexto da pandemia da COVID-19. Para exemplificar esse crescimento súbito, o Banco do Brasil S.A., que no início de 2020 tinha 257 empregados trabalhando em modalidade remota (o que correspondia a menos de 0,3% dos seus empregados), migrou 32 mil funcionários para o teletrabalho em poucas semanas, entre março e abril deste ano. Além disso, o referido banco já anunciou que planeja manter cerca de 10 mil funcionários em teletrabalho de forma definitiva. Nessa mesma linha, muitas empresas têm anunciado que pretendem expandir consideravelmente o teletrabalho no período pós-pandemia.

Antes de analisarmos o crescimento dessa modalidade de trabalho e seus efeitos nas relações trabalhistas, importante elucidar que a terminologia teletrabalho é utilizada para definir o trabalho realizado fora das dependências do empregador, mediante a utilização de meios telemáticos. Vale salientar, entretanto, que o teletrabalho não precisa ser realizado necessariamente no domicílio do empregado (mas apenas fora da empresa), de modo que não é correto afirmar que teletrabalho e home office sejam a mesma coisa, embora seja possível constatar que, em virtude das medidas sanitárias recomendadas desde o início da pandemia, a esmagadora maioria do teletrabalho tem sido realizado na residência dos empregados. De outro lado, o trabalho em domicílio ou home office será realizado na modalidade teletrabalho quando o comando, a execução e a entrega do resultado ocorrerem mediante a utilização da tecnologia da informação, sobretudo de recursos de telecomunicações e de informática. É sobre essa hipótese que trataremos.

O Ministério Público do Trabalho (MPT), atento ao aumento súbito e extraordinário do teletrabalho e preocupado com as condições em que essa modalidade de trabalho tem sido realizada, emitiu Nota Técnica apontando 17 (dezessete) recomendações às empesas, sindicatos e órgãos da Administração Pública que possuem empregados em regime de teletrabalho, visando a garantir a proteção desses trabalhadores.

Dentre as principais recomendações do MPT, destaca-se a responsabilidade do empregador pela infraestrutura necessária para que o empregado possa realizar o teletrabalho e o dever de cuidado do empregador com as condições em que o teletrabalho é exercido (meio ambiente de trabalho), visando a eliminar os elementos físicos, ergonômicos e mentais que podem afetar negativamente a saúde do trabalhador e que estejam diretamente relacionados com a segurança e com a higiene do trabalho.

O Parquet recomenda, ainda, que o empregador esteja atento às relações interpessoais no ambiente de trabalho, que realize feedbacks dos trabalhos executados e que garanta pausas e intervalos para descanso, repouso e alimentação, no intuito de impedir as sobrecargas psíquica e física do trabalhador. De acordo com a Nota Técnica, recomenda-se, ainda, que as empresas ofereçam apoio tecnológico e capacitação tecnológica para o teletrabalho, nos termos da Convenção 142 da OIT e do artigo 205 da Constituição da República.

Em relação à jornada de trabalho, o Ministério Público do Trabalho preconiza que os empregadores elaborem escalas que acomodem as necessidades da vida familiar, bem como adotem modelos de etiqueta digital para orientação de toda a equipe, com a definição de horários específicos destinados ao atendimento virtual das demandas do empregador, assegurando os repousos legais e o direito à desconexão. Há, ainda, recomendação direcionada à garantia do respeito ao direito de imagem e à privacidade dos trabalhadores, bem como a garantia de que o uso de imagem e voz do empregado seja precedido de consentimento expresso.

Além disso, o MPT indica que os empregadores estabeleçam política de autocuidado para identificação de potenciais sinais e sintomas de COVID-19, garantindo o isolamento do empregado, se for o caso. Recomenda que os idosos sejam preservados, na forma da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e que o teletrabalho favoreça à obtenção, conservação e progressão do emprego das pessoas com deficiência, conforme dispõe a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

As recomendações listadas na referida Nota Técnica, emitida pelo MPT, dizem respeito a direitos previstos na legislação trabalhista pátria, na Constituição Federal e em várias Convenções da OIT, conforme registrado nos considerandos do referido documento. Além disso as recomendações editadas pelo MPT convergem com as orientações apresentadas pela OIT em guia prático referente ao “teletrabalho durante e após a pandemia da COVID-19”, publicado em julho de 2020[5]. No referido documento, a OIT recomenda fortemente que haja um gerenciamento contínuo das fronteiras entre o tempo de trabalho e tempo destinado à vida pessoal, para que os formuladores das políticas de trabalho remoto garantam a eficácia do trabalho e o bem-estar do trabalhador, a evidenciar a afinidade das orientações transmitidas pela OIT e pelo MPT.

Vale a pena enfatizar que a OIT, no documento acima citado, apresentou pesquisas específicas realizadas pela Eurofound durante a pandemia a constatarem que empregados em home office estão realizando mais horas extras em casa do que realizariam se estivessem laborando nas dependências da empresa e, ainda, que utilizam seu tempo livre para atender às demandas do trabalho. Pesquisas realizadas no Brasil também dão conta de que o teletrabalho durante a pandemia acarretou ampliação da jornada diária dos empregados, a evidenciar a relevância das diretrizes lançadas pelo MPT e pela OIT, especialmente no tocante à necessidade de se respeitar a jornada contratual, assegurar as pausas legais e observar o direito à desconexão.

Atrelado a esse movimento de adoção em larga escala do trabalho remoto, houve o aumento extraordinário das ações trabalhistas relacionadas a essa modalidade de trabalho, conforme apontou reportagem do Estadão publicada no final do mês de outubro. A notícia apresentou pesquisa demonstrando que as ações trabalhistas relacionadas ao teletrabalho subiram 270% durante a pandemia da COVID-19 em relação ao mesmo período do ano passado[8]. Se, por um lado, é possível afirmar que o aumento das ações judiciais está diretamente ligado ao aumento súbito do teletrabalho no contexto da pandemia, por outro lado, as dúvidas geradas pela precária e assistemática regulamentação trazida pela recente Reforma Trabalhista e pelas legislações de emergência (Medidas Provisórias editadas ao longo da pandemia), aliadas ao reiterado descumprimento dos direitos trabalhistas pelas empresas nesse período, certamente também contribuíram para o aumento das ações judiciais propostas por empregados em teletrabalho.

Não por outro motivo foram apresentados vários projetos de lei no Congresso Nacional, no contexto da pandemia, visando a regulamentar melhor esse sistema de trabalho, conforme também se destacou na notícia ora comentada.

Um outro fator a justificar esse significativo aumento de ações judiciais no curso da pandemia é que muitas empresas, ao migrarem seus empregados para o teletrabalho em home office de maneira emergencial, não se atentaram para a necessidade de promoverem as adequações necessárias em decorrência da transferência do local de trabalho do ambiente físico das empresas para o ambiente doméstico, bem como não definiram como se daria a gestão da jornada de trabalho do empregado. Além disso, muitas empresas presumiram que poderiam deixar de pagar parcelas de natureza salarial, como o auxílio-alimentação, pelo simples fato de a pessoa estar trabalhando em sua residência.

A esse respeito, um esclarecimento importante a ser feito é que a Reforma Trabalhista, não obstante disponha que os empregados em regime de teletrabalho não estariam amparados pelas normas relativas ao labor em sobrejornada, precisa ser examinada de maneira sistêmica com a própria CLT e com a Constituição Federal.

É inconteste que a Reforma Trabalhista, em quase todas as suas alterações, provocou ou estimulou o rebaixamento das condições de trabalho e a redução de direitos dos empregados. E com o teletrabalho não foi diferente. Às custas do exaurimento da força laboral, mediante a implementação de jornadas excessivas, aumentam-se os lucros das empresas. Assim, ao excluir os empregados que prestam serviços no regime de teletrabalho da regulamentação das jornadas máximas diárias e semanais, a intenção da Reforma Trabalhista foi realmente retirar esses trabalhadores do âmbito de proteção juslaboral estabelecido no artigo 58 da CLT e, ainda, no artigo 7º, XIII, da CF/88, que estipula a duração do trabalho não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais.

A esse respeito, faz-se importante o alerta de Maurício Godinho Delgado de que a definição da submissão ou não do empregado às regras relativas à jornada de trabalho deve levar em consideração o princípio da primazia da realidade, mediante a verificação da possibilidade de controle e fiscalização da atividade laborativa do empregado, a exemplo das hipóteses de trabalho externo incompatível com o controle de jornada. Não há dúvidas, entretanto, que os meios telemáticos e tecnológicos de controle são cada vez mais aprimorados e submetem os empregados à fiscalização do horário de trabalho semelhante ou até mais acentuada e acintosa do que o controle pessoal presencial, gerando o direito do empregado à percepção das horas extras laboradas fora da previsão legal.

Desse modo, é perfeitamente possível aplicar ao teletrabalhador as normas relativas à sobrejornada de trabalho quando a empresa exerce controle sobre a atividade e sobre o tempo de trabalho, não havendo que se falar em incompatibilidade entre o teletrabalho e a jornada extraordinária. Ademais, frise-se, o direito à jornada de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais possui previsão constitucional e também está amparado pelos direitos fundamentais ao lazer (art. 6º, caput, da CF/88) e ao respeito à vida privada (art. 5º, X, da CF/88) – que consagram o direito ao “não-trabalho” ou o “direito à desconexão” -, os quais já têm sido debatidos nos tribunais brasileiros e já foram regulamentados em países com inegável avanço na proteção ao trabalhador, como é o caso da França.

Por fim, é preciso ressaltar que o poder diretivo e a subordinação não desaparecem, em regra, no teletrabalho, sendo por vezes até acentuados, de modo que se estiverem presentes os pressupostos da relação de emprego no teletrabalho, com o concurso dos elementos fático-jurídicos inseridos no caput do artigo 3º da CLT, os empregadores são obrigados a respeitar o contrato de trabalho e os direitos previstos na legislação trabalhista em sua integralidade, da mesma forma que se dá em relação aos empregados que laboram nas dependências do empregador, nos exatos termos das diretrizes enunciadas pelo MPT e pela OIT.

*Denise Arantes é advogada trabalhista e sócia do Escritório Mauro Menezes & Advogados